domingo, 15 de agosto de 2010

Casa Vazia

A casa vazia
As paredes sujas
O silêncio e o vento
Como únicos habitantes
Poeira e odor de mofo
O espelho de sol na parede
A cadeira de balanço que não se move mais
E um imenso vazio
Nada mais
Fechando os olhos
É possível que os ouvidos
Escutem velhas risadas e gargalhadas
De um tempo que não mais existe
Das bocas que não mais se encontram
Das vozes que não estão mais presentes
Partiram no tempo
Ausências sentidas
Resta a casa quase vazia
Suja e silenciosa
Resta a memória
Aquela que não nos abandona
Acabou a família
Restam lembranças

Tua presença na cama



Passo horas a te olhar
Encantamento
Admiro seus olhos fechados
Beijo suas mãos estendidas
Adoro sentir sua pele
Me enrosco em você
Mas não durmo
Quero ficar a te olhar
Admirar sua respiração
Olhar pra sua boca
Desejar te ter assim para sempre
Ficar ali e deixar o sempre acontecer
Esta eternidade que é um momento
Feliz
Este momento fugaz que é eterno
E assim ter você só pra mim
Por toda uma vida
Que são só alguns minutos ali
A te olhar, apaixonada

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Meu avô - parte 1: a relação

Provavelmente todo mundo que me lê por aqui, como são amigos, já sabem que meu avô partiu desta vida neste final de semana. Fui para o Rio participar de seu sepultamento, por uma última despedida e para dar força ao meu pai, pela enorme perda que deve ser pra ele.

Várias coisas me inspiraram a escrever durante o dia deste sepultamento, segunda, 2/08/2010.

Primeiro, sobre a minha relação com meu avô, o único que conheci, pois o pai de minha mãe faleceu antes do meu nascimento. Vovô era também o último dos meus avós vivos, já que perdi as minhas avós muito cedo: a mãe de minha mãe com dez anos e a mãe do meu pai com 14 para 15 anos. Lá se vão + de 20 anos sem as avós... Isso é uma carência incrível na vida de uma pessoa, né? Avós são seres especiais, fazem falta. Ainda assim, tenho grandes e ótimas memórias das minhas duas avós, da infância na casa delas, dos carinhos especiais e exceções ou mimos que cada uma tinha para comigo. Já com meu avô, eu quase não tenho memória da presença dele na minha infância. Embora saiba que ele estava sempre ali, nos domingos na “casa da vovó”. Mas não me lembro de nenhum carinho especial, fala, brincadeira ou momento nosso. Já na adolescência, a memória é a de uma certa mágoa. A do avô que não me dava bola. Explico: meu avô sempre numerou os netos por ordem de nascimento, sendo a minha irmã a número um, meu primo Igor o número dois, eu a número três. Roberta, Renata e Fernanda são respectivamente as netas 4, 5 e 6. Mas essa numeração dizia mais do que a ordem de chegada. Minha irmã era a “número um” no coração do meu avô. Igor era o único neto homem, chegou a morar com meus avós, também tinha seu destaque: no. 2 Daí pra frente éramos as outras, o resto das netas. Sem exagero, meu avô não dava muita bola pra gente, não era exatamente carinhoso e gentil. A lembrança da adolescência é a da fase em que eu passei a reparar isso: que ele passava por mim direto, sem cumprimentar, para ir falar com a minha irmã. Era como se eu não existisse. Acabou virando piada este comportamento dele, a gente (pq não era só eu quem reparava) fazia galhofa e eu provocava ele: “ei, tô aqui hein?!!” e fazia ele vir falar comigo. Só quando eu já estava na faculdade, namorando um rapaz de apelido Lico, ele começou a prestar mais atenção em mim. Pela coincidência do apelido do namorado ser, segundo ele, o mesmo apelido de infância do meu tio Itamar, seu filho preferido (sim, meu avô tinha dessas coisas com os filhos também). Ele tinha uma simpatia natural pelo Lico e aí, eu fui entrando nas conversas, por tabela. Aos 81 anos de idade, teve um aneurisma na horta abdominal e foi operado de emergência. Foi lá pra casa se recuperar e então nos aproximamos um pouco mais, eu ajudando a cuidar dele. Passou a me chamar carinhosamente de “espingardinha” ou “espoletinha”, em referência à criança sapeca que eu fui. Como eu já estava um pouco mais velha, as mágoas de adolescência já não eram mágoas, apenas memórias e só então passamos a ter uma relação um pouco mais carinhosa. Eu já com meus 20 e poucos anos. Ele acima dos 80.

Quando ele completou 90 anos e ninguém se animou a comemorar, organizei a festa na minha casa, na Tijuca, já namorando o Daniel (ainda não éramos oficialmente casados). Organizei uma festinha caseira bem bacana, convidei os filhos a dividirem os custos comigo, usei argumentos fortes com os netos que ameaçaram não aparecer (justamente aqueles que mais exploraram meu avô) e consegui reunir todos os filhos e netos e a maioria dos bisnetos, mais amigos próximos da família na comemoração surpresa de seus 90 anos. Ele ficou feliz e me agradeceu com a ênfase da repetição que só quem conheceu meu avô vai saber entender o modo como ele me disse “neta, muito, muito obrigada. Muito obrigada mesmo, viu?” Fofo. Meio tarde, mas eu ainda aproveitei a “vovôternidade” do Seu Almeril.

Coincidências ou empurrões da vida, fui sua vizinha ali na Tijuca. Ele morava na rua de trás. Embora tão próximos, eu confesso que quase não passava lá para vê-lo. Trabalhava na Vale, viajava muito e não tinha o famoso “tempo”. Mas sempre que eu estava pelo bairro, passava para dar uma conferida e era quase certo encontrá-lo na rua, tomando um café no boteco da esquina ou indo à loteria ou simplesmente vendo a vida passar à sua frente na calçada, solitário e nitidamente entediado.

Às vezes também o encontrava no flagra, fazendo mercado para as “namoradinhas” dele. Meu avô era um homem generoso. Ajudou muito alguns filhos e netos, financeiramente, até o final da vida. E era um “velho bobo”, assanhado, digamos assim. O “rei” das camelôs e domésticas da Tijuca. Elas lhe davam um pouco de bola, ele se achava podendo alguma coisa ainda e elas se aproveitavam dele. Arrumou dívidas no fim da vida por conta de uma delas, a quem deu até carro. Mas não era falta de lucidez, não estava gagá. Era só uma certa inocência que volta com a idade avançada, uma ilusão comprada com o dinheiro. Bobagem.

Perdi muitas histórias do meu avô, certamente. Sei mais sobre ele do que ouvi falar do que ouvi ele mesmo contar. Quando ele foi internado há um mês atrás, me dei conta de que talvez por sua longevidade, a gente se acostumou tanto com a presença dele que já nem contava mais com a sua partida, dá pra entender esta sensação? Acho que a gente já via meu avô como Highlander, imortal; que ia ficar aí, vendo a gente partir. Quando soube a gravidade do caso, me dei conta da sua fragilidade e da proximidade de sua partida. Lamentei não ter aproveitado mais. Sem culpa e sem mágoas. Havia só que se lamentar um tempo que não teríamos mais disponível e que perdemos, nem sei por quê.

Meu avô - parte 2: a partida

A segunda inspiração pra escrever é a própria vida do meu avô, sua longevidade e sua morte, relativamente tranqüila. Uma transição diferente do comum para uma pessoa que, sem dúvida, teve muita “proteção” a vida inteira. Conversava ontem com meu primo-irmão Rodrigo e minha mãe sobre a força da fé. Talvez isso tenha feito com que ele fosse tão protegido: meu avô não sentia dor alguma. Teve câncer e só descobriu porque começou a ter sangramentos, que o levaram a algumas transfusões de sangue. Dor? Nem sinal. Operou, ficou bem da cirurgia, mas seu coração já não batia com força suficiente para fazer funcionar seus órgãos vitais, como rim e fígado. Foi pifando. Já internado, não sentiu esta falência. Não sofreu nem dor e nem a consciência da partida, devido à sedação pós cirúrgica. Foi rápido o suficiente para que não sofresse, não agonizasse. Foi lento o suficiente para que a família percebesse que era chegada a hora e se conformasse, torcendo para o melhor desfecho para ele. Parou. Meu avô era muito independente e se manteve lúcido até o final da vida. Não ia suportar ficar doente, dependente, na cama de hospital ou na casa de algum filho. Morava sozinho até uns 2 ou 3 anos atrás! Dá pra imaginar um senhor de 90 anos sozinho? Só aceitou ter um acompanhante em casa depois de muita, muita insistência dos filhos (devido à idade avançada dele, todos temiam que ele sofresse algo sozinho em casa, sem ter quem o socorresse). Mas só aceitou depois levar um ou dois sustinhos: de sentir falta de ar, alguma dificuldade para andar ou uma tontura pra sair da cama. Aí reconheceu a sua fragilidade e aceitou que alguém dormisse com ele em casa. Mas deixar de morar sozinho, jamais! (risos) Ah, e tinha que ser mulher: dormir com outro homem em casa, nem pensar! (+ risos)

Falei com ele pelo telefone pela última vez no dia 26/07, dia dos avós. Ele me ouviu ao telefone, agradeceu rindo a ligação, achando divertido eu ligar pelo “dia dos avós”. Agradeceu o carinho e perguntou pela minha filha. Lúcido, lúcido. Aos 93, quase 94 anos (faria em outubro). Tudo bem, eu tive que berrar um pouco ao telefone, mas o velho estava inteiraço pra quem estava com tanta estrada percorrida, um puta câncer (estômago, baço, pâncreas), entupimentos nas veias, coração grande e lento... Nem parecia. Estava já internado, era véspera da cirurgia pra retirada do câncer. Depois não tivemos mais oportunidade de nos falarmos. Mas foi uma despedida bacana entre nós.

Meu avô - parte 3: a religião e a despedida

Por fim, outro motivo de inspiração foi o ritual de despedida do meu avô. Ele pediu para ser sepultado na “irmandade” onde atuou por 71 anos (descobri esta data hoje). Eu sabia que ele era espírita, que freqüentava este lugar em Guapimirim onde sempre se referia como “irmandade”, sabia que era devoto de São Jorge pela história do nome do meu pai... Mas eu não tinha noção do que era esta irmandade, de quem era o meu avô lá. Curioso que ele nunca atuou missionariamente em família: nunca nos convidou a ir lá, nunca nos estimulou a fazer parte de sua religião. Nunca. E que impacto teve esse dia de hoje! Cheguei à conclusão que não conhecia mesmo o meu avô. Havia ali uma outra vida, um outro ser, tanto que até outro nome ele tinha lá: Zairths. Confesso que eu tinha curiosidade de saber como seria seu enterro, por saber que ia ser nesta irmandade da qual ninguém da família sabia muita coisa. O lugar é como um sítio, com riacho. As várias casas abrigam muitas capelas, muitas imagens de santos católicos, uma tenda em homenagem a um preto velho, muitos números escritos em locais estratégicos (alguns se repetiam mais vezes como 33, 777), triângulos, estrelas de Davi, desenhos de planetas. Numerologia, astrologia, umbanda, catolicismo, kardecismo, kabala, maçonaria... A impressão que dá ao visitante leigo é que a “irmandade” é uma espécie de seita, uma religião baseada numa grande mistura de várias outras religiões. Bastante confuso para quem não conhece.

Se intitulam “Irmandade Espiritual Estrela Dalva”. O local é chamado de Cidade Wandú e também se nomeiam “Maçonaria Oriental Wanduísta”. Foi fundada pela senhora Maly-Hilda em 1938. Uma placa no local traz os nomes da fundadora e de seus discípulos, com seus respectivos “cargos” e nomes na Irmandade, pois ali dentro todos passavam a ter nova identidade. Meu avô era o único que ainda estava vivo na lista da placa, com cerca de 15 ou 20 nomes. E seu cargo de “guardião de honra” listava no topo, abaixo apenas da fundadora e de um outro cargo cujo nome agora não recordo. Além desse cargo expresso na placa, seus companheiros presentes no cerimonial do enterro o chamaram também de “reverendo IED” e “sacerdote Zairths” várias vezes durante a estranha cerimônia que presenciamos.

PARENTESE: [quando me refiro ao meu estranhamento, é pelo total desconhecimento da existência daquela instituição. Não faço nenhum tipo de julgamento, até porque, eu entendo que aquela, como TODAS as religiões, é feita POR homens e para os homens. Portanto tem defeitos e interesses como qualquer ser humano. Mas também, como toda religião, pretende ser algo do bem, que faça as pessoas serem melhores, seja aqui mesmo ou na vida espiritual. Que agrega pessoas em torno de certos valores selecionados pelo próprio grupo, pessoas com uma identidade comum em prol de alguma causa, geralmente. Vejo isso positivamente, não há preconceitos ou julgamentos na minha fala. Apenas estranhamento, no sentido mais pleno da palavra, o do desconhecimento sobre algo e da percepção da novidade.]

O sepultamento tem uma série de rituais. Uma sequência que começou às 10h e acabou depois das 13h. Mas o que vale destacar é o local onde ele ficou. Onde, nem sabíamos, mas era onde ele TINHA que ficar. Ainda bem que ele nos disse antes de partir onde gostaria de ser enterrado. A Irmandade tem um pequeno cemitério, no lado esquerdo da estrada de quem vai à Teresópolis, logo depois da entrada de Guapimirim, quase em frente ao portal de entrada da cidade. Um lugar que não se vê da estrada, não se vê nada de lugar algum. Escondido entre a vegetação, um local bonito guarda os membros da Irmandade, sendo que há um platô mais alto, onde está sepultada a fundadora, com um imenso e belo jazigo de mármore branco. Ao seu lado esquerdo, um jazigo bem mais simples e menor, de seu marido. E acima dela na colina, dois túmulos: para os dois guardiões de honra da Irmandade que passariam ali a ser também guardiões da fundadora. Um deles já estava ocupado pela outra guardiã: uma senhora já falecida e o outro estava à espera do meu avô! O lugar mais alto da colina, como guardião da fundadora, lhe aguardava. Ocupar esse lugar não era apenas ter onde repousar, entendi ontem... Ele tinha uma missão a cumprir mesmo após a morte. Sua inserção ali como guardião é mais uma etapa de sua jornada na Irmandade, uma etapa pós vida. Uma missão espiritual. Por isso ele avisou que queria ir pra lá. Ele tinha que ir pra lá. Um bonito lugar, uma história interessante, quase encantadora para quem ali estava descobrindo todo um novo universo.

Como se não bastasse tantos motivos inspiradores para compartilhar esta experiência com vocês, ainda teve o discurso de despedida de um dos companheiros de Irmandade do meu avô, contando a história de sua entrada na instituição, de como conheceu a fundadora e se “apaixonou por ela”, “uma história de amor”, disse o sujeito. E não pareceu falar no sentido figurado. Conhecendo o interesse do meu avô pelas mulheres e sabendo que a tal fundadora era uma pessoa bastante erotizada, ou nas palavras da “super sincera” minha mãe: “uma mulher que só falava sacanagem” como assim a definiu por tê-la conhecido pessoalmente na década de 60... Dá para imaginar meu avô tendo um caso com a tal Maly-Hilda. Meu lado barraqueira teve um segundo de revolta no meio daquela despedida, afinal achei aquele discurso sobre o amor dos dois uma sacanagem com a minha avó. Mas ela já faleceu há 20 anos, já deve estar bem evoluída e nem um pouco interessada nas aventuras do meu avô no plano físico. Silenciei, calei a barraqueira e, automaticamente o meu lado romântico novelístico veio à tona. Imaginação de escritora? Sei lá, mas lembrei dos livros do Dan Brown: teria aquela seita rituais secretos? Pergunto com o maior respeito, é bom destacar, afinal isto é um texto, vai ficar aí e ninguém está ouvindo minha entonação. Pergunto seriamente, respeitosamente, repito. Será que existem ali segredos maiores do que todas as dúvidas que aquele lugar e todas as representações, textos, símbolos e números ali contidos já nos traziam à mente?

Não entendi nada de todo aquele cerimonial mas respeito. Meu avô dedicou 71 anos de sua vida àquilo. Fundada em 1938, ele se tornou membro em junho de 39 e participou ativamente até sua morte. Seus companheiros o elogiaram muito e nos falavam a toda hora sobre sua importância para aquele lugar e aquela Irmandade. Enfim, foi um dia estranho, cansativo, longo. Tinha a tristeza da despedida e a curiosidade que a novidade das descobertas – ou das não descobertas; das dúvidas suscitadas – trazia. A gente espera, ao menos, ter colaborado para que ele cumprisse sua missão e ter feito sua vontade. Que ele esteja feliz e em paz. Valeu, Seu Almeril.

(Mas ficará a pergunta: quem terá sido Zairths afinal?..)