Provavelmente todo mundo que me lê por aqui, como são amigos, já sabem que meu avô partiu desta vida neste final de semana. Fui para o Rio participar de seu sepultamento, por uma última despedida e para dar força ao meu pai, pela enorme perda que deve ser pra ele.
Várias coisas me inspiraram a escrever durante o dia deste sepultamento, segunda, 2/08/2010.
Primeiro, sobre a minha relação com meu avô, o único que conheci, pois o pai de minha mãe faleceu antes do meu nascimento. Vovô era também o último dos meus avós vivos, já que perdi as minhas avós muito cedo: a mãe de minha mãe com dez anos e a mãe do meu pai com 14 para 15 anos. Lá se vão + de 20 anos sem as avós... Isso é uma carência incrível na vida de uma pessoa, né? Avós são seres especiais, fazem falta. Ainda assim, tenho grandes e ótimas memórias das minhas duas avós, da infância na casa delas, dos carinhos especiais e exceções ou mimos que cada uma tinha para comigo. Já com meu avô, eu quase não tenho memória da presença dele na minha infância. Embora saiba que ele estava sempre ali, nos domingos na “casa da vovó”. Mas não me lembro de nenhum carinho especial, fala, brincadeira ou momento nosso. Já na adolescência, a memória é a de uma certa mágoa. A do avô que não me dava bola. Explico: meu avô sempre numerou os netos por ordem de nascimento, sendo a minha irmã a número um, meu primo Igor o número dois, eu a número três. Roberta, Renata e Fernanda são respectivamente as netas 4, 5 e 6. Mas essa numeração dizia mais do que a ordem de chegada. Minha irmã era a “número um” no coração do meu avô. Igor era o único neto homem, chegou a morar com meus avós, também tinha seu destaque: no. 2 Daí pra frente éramos as outras, o resto das netas. Sem exagero, meu avô não dava muita bola pra gente, não era exatamente carinhoso e gentil. A lembrança da adolescência é a da fase em que eu passei a reparar isso: que ele passava por mim direto, sem cumprimentar, para ir falar com a minha irmã. Era como se eu não existisse. Acabou virando piada este comportamento dele, a gente (pq não era só eu quem reparava) fazia galhofa e eu provocava ele: “ei, tô aqui hein?!!” e fazia ele vir falar comigo. Só quando eu já estava na faculdade, namorando um rapaz de apelido Lico, ele começou a prestar mais atenção em mim. Pela coincidência do apelido do namorado ser, segundo ele, o mesmo apelido de infância do meu tio Itamar, seu filho preferido (sim, meu avô tinha dessas coisas com os filhos também). Ele tinha uma simpatia natural pelo Lico e aí, eu fui entrando nas conversas, por tabela. Aos 81 anos de idade, teve um aneurisma na horta abdominal e foi operado de emergência. Foi lá pra casa se recuperar e então nos aproximamos um pouco mais, eu ajudando a cuidar dele. Passou a me chamar carinhosamente de “espingardinha” ou “espoletinha”, em referência à criança sapeca que eu fui. Como eu já estava um pouco mais velha, as mágoas de adolescência já não eram mágoas, apenas memórias e só então passamos a ter uma relação um pouco mais carinhosa. Eu já com meus 20 e poucos anos. Ele acima dos 80.
Quando ele completou 90 anos e ninguém se animou a comemorar, organizei a festa na minha casa, na Tijuca, já namorando o Daniel (ainda não éramos oficialmente casados). Organizei uma festinha caseira bem bacana, convidei os filhos a dividirem os custos comigo, usei argumentos fortes com os netos que ameaçaram não aparecer (justamente aqueles que mais exploraram meu avô) e consegui reunir todos os filhos e netos e a maioria dos bisnetos, mais amigos próximos da família na comemoração surpresa de seus 90 anos. Ele ficou feliz e me agradeceu com a ênfase da repetição que só quem conheceu meu avô vai saber entender o modo como ele me disse “neta, muito, muito obrigada. Muito obrigada mesmo, viu?” Fofo. Meio tarde, mas eu ainda aproveitei a “vovôternidade” do Seu Almeril.
Coincidências ou empurrões da vida, fui sua vizinha ali na Tijuca. Ele morava na rua de trás. Embora tão próximos, eu confesso que quase não passava lá para vê-lo. Trabalhava na Vale, viajava muito e não tinha o famoso “tempo”. Mas sempre que eu estava pelo bairro, passava para dar uma conferida e era quase certo encontrá-lo na rua, tomando um café no boteco da esquina ou indo à loteria ou simplesmente vendo a vida passar à sua frente na calçada, solitário e nitidamente entediado.
Às vezes também o encontrava no flagra, fazendo mercado para as “namoradinhas” dele. Meu avô era um homem generoso. Ajudou muito alguns filhos e netos, financeiramente, até o final da vida. E era um “velho bobo”, assanhado, digamos assim. O “rei” das camelôs e domésticas da Tijuca. Elas lhe davam um pouco de bola, ele se achava podendo alguma coisa ainda e elas se aproveitavam dele. Arrumou dívidas no fim da vida por conta de uma delas, a quem deu até carro. Mas não era falta de lucidez, não estava gagá. Era só uma certa inocência que volta com a idade avançada, uma ilusão comprada com o dinheiro. Bobagem.
Perdi muitas histórias do meu avô, certamente. Sei mais sobre ele do que ouvi falar do que ouvi ele mesmo contar. Quando ele foi internado há um mês atrás, me dei conta de que talvez por sua longevidade, a gente se acostumou tanto com a presença dele que já nem contava mais com a sua partida, dá pra entender esta sensação? Acho que a gente já via meu avô como Highlander, imortal; que ia ficar aí, vendo a gente partir. Quando soube a gravidade do caso, me dei conta da sua fragilidade e da proximidade de sua partida. Lamentei não ter aproveitado mais. Sem culpa e sem mágoas. Havia só que se lamentar um tempo que não teríamos mais disponível e que perdemos, nem sei por quê.
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