domingo, 16 de maio de 2010

Virada Cultural


Começou há pouco a virada cultural de SP. A publicidade do evento diz que são 24 horas de cultura. Será mesmo?

Certo é que são 24h a 8 milhões de reais. Ok, vamos mudar a conta: 1.000 eventos (segundo a organização) a R$ 8 milhões. Isto daria uma ótima média de R$ 8.000,00 por evento; valor baixo em se considerando que custos de ações culturais como shows musicais costumam ser altos: transporte, hospedagem, cachês, equipamentos de som, luz, técnicos, palcos e por aí vai – longe. Ainda assim, opino que é um recurso muito desperdiçado.

Três coisas precisam ser levadas em consideração: a primeira é que nem todo evento que é anunciado como sendo da Virada Cultural é bancado pela Virada, o que já fura as contas feitas acima. A segunda consideração importante a se fazer é a comparação entre o orçamento anual da Secretaria Municipal de Cultura e o evento. Bem que tentei encontrar a informação sobre o orçamento da Cultura no site da Prefeitura de SP, mas depois de alguns minutos sem sucesso, desisti. Mas segundo o jornal Folha de SP, o evento consome em um dia o orçamento anual da área (programação) na Secretaria Municipal de Cultura. Ou 10% do orçamento global da Secretaria incluindo aí manutenção de corpos artísticos, patrocínios, etc. Em um dia. E um dia de quê? E este é o terceiro ponto para o qual gostaria de chamar atenção. De que cultura estamos falando?

Sobre as atrações da Virada

O que não está explicado - ao menos não vi divulgado em nenhum lugar -, são eventos de Centros Culturais que já estavam programados/em realização e que ocorreriam normalmente este final de semana, havendo ou não Virada. Mas eles estão contabilizados dentre os “mil”. Não são projetos feitos para a Virada. Foram tão somente incorporados. Alguma verba foi destinada a estes eventos? Então deveriam ser contabilizados nas “mil atrações”? Dou exemplos: bibliotecas foram inclusas no pacotão como se fosse algum evento especial elas abrirem ao público este final de semana. A interessantíssima peça de teatro da Beth Goulart sobre Clarice Lispector já estava em cartaz no CCBB mas está citada na programação da Virada. Não ficou claro se os ingressos deste final de semana serão subsidiados pela Virada.

Aliás, clareza é uma coisa difícil de encontrar no site oficial, que eu pesquisei. Os textos do site são péssimos, mal escritos ou que não dizem nada sobre a Virada – ou talvez por isso mesmo digam muito a respeito da não existência de um critério claro e bem definido. Falta uma curadoria decente. Ou se abre para inscrição indiscriminadamente e tudo é aprovado até se atingir o valor do orçamento ou se tem uma curadoria com uma linha curatorial definida, um objetivo, um tema ou questionamento. Chamar essa coleção de “eventos” de curadoria é ofender alguns sérios profissionais. Aliás, os organizadores da Virada confundem tatoo com body art! Só o fato deles chamarem as atrações de “eventos” pode ser também um indicativo interessante. O que me parece, é que a Virada Cultural está mais para entretenimento do que para cultura. Mas este é o terceiro ponto que chamei atenção na minha introdução.

Cultura X Entretenimento X Lazer

Afinal o objetivo da Virada Cultural é promover a arte e a cultura ou oferecer um final de semana de lazer ao povão? Embora estas coisas possam se misturar, são objetivos bastante diferentes.

Façamos algumas perguntas, dando especial atenção à extensa lista da programação que pode ser conferida em http://viradacultural.org/programacao :

Todas as manifestações artísticas estão contempladas na programação? Dentro de cada manifestação artística, todos os estilos estão contemplados? Não e não. Fazem falta na programação grupos e artistas novos, novas manifestações. A programação gira em torno de música, teatro, dança, cinema, exposições. Não contei, porém mais de 70% das atrações são de música. A Virada é uma grande coleção de shows. Gastronomia? Um evento pago e os melhores pastéis de SP em barracas próximas aos palcos. Circo? Quase nada. Nem o novo queridinho da mídia, o grafite, aparece. Hip-hop e rap, manifestações genuinamente de rua, não estão contemplados na Virada. Museus? Dois. Literatura? Saraus de poesia, rodas de leitura, debates: ações que praticamente não precisam de recursos, não foram promovidas nesta edição. Quase nada de atividades para crianças. E se fala em formação de público...

Double You e Living Coulor são algumas das atrações alardeadas. Sem xenofobia, que não é a minha praia, mas as atrações a serem promovidas pela Secretaria Municipal de Cultura não deveriam ser nacionais? Muitos nomes consagrados, pouca experimentação. É bacana ter nomes consagrados se apresentando na rua, gratuitamente, pois geralmente a maior parte da população não teria acesso a shows destes grandes nomes. Ok. Mas e o estímulo aos novos artistas?

Eu vejo distorções muito claras nesta programação toda. Um dos eventos dentro da programação se chama “Dimensão Nerd”. Reúne quadrinhos, RPG e Cosplay... Eu concordo que HQ é cultura mas parei aí. RPG é jogo, entretenimento. Cosplay é o entretenimento do entretenimento. Porquê não nos fantasiarmos no samba, promovermos um desfile de bloco de rua, então? Acho que estaríamos mais dentro de uma proposta cultural. Estou sendo radical? Então me explica porque o bar que toca samba sempre vai ter especialmente no final de semana da Virada um campeonato de dominó (e não vai ter o samba)?! Está lá na programação da Virada: campeonato de dominó. Vamos pensar a cultura com olhar antropológico, super aberto e considerar que tudo é cultura? Fica amplo demais pra qualquer curadoria. Também acho que pensar cultura só como arte (como faz o MinC), seria restritivo. Então vamos pensar juntos: construção de casas? Está lá na programação da Virada. Tudo bem que arquitetura é cultura, mas construir casas é ação social e não cultural. E se é financiada por empresas privadas e terceiro setor... Não saiu do orçamento da Virada. Está na programação por quê mesmo?

Estou tentando, mas está difícil entender o que é a Virada.

O acesso é garantido a todos? Vamos pensar em informação, ingresso e localização. A grande mídia divulga bastante, mas será que pessoas que não consomem cultura normalmente se sentem convidadas a participar desta “grande festa”? As pessoas sabem quais eventos são gratuitos e quais têm ingressos cobrados? Porque nem todos os eventos são gratuitos? Se é para promover um final de semana excepcional na cidade, por que não franquear a entrada em todos os eventos?

Concentrar os eventos no Centro não significa facilitar o acesso. Pessoas que moram longe do Centro podem ter que gastar muito tempo e dinheiro para chegar aos palcos. Para democratizar, os eventos deveriam se espalhar pela cidade toda, todas as regiões, no meu entender. Em uma das matérias que vi ou li sobre a Virada, alguém defendeu que a realização no Centro visava a sua divulgação e revitalização. Um único dia, onde as pessoas sabem que o local estará movimentado, com esquema especial de segurança... Será que as pessoas que freqüentam a Virada vão mesmo se sentir estimuladas a voltar ao Centro em um outro dia normal? Tenho sérias dúvidas se isto funciona. E falar em “formar público” e “permitir acesso” com os eventos da Sala SP tendo ingressos entre R$ 22 e R$ 50?

O Brasil tem mania de recorde. A iniciativa da Virada parece uma tentativa desesperada de bater um recorde de eventos, em pouco tempo, não importa a qualidade. Pra quê tanto evento em um único dia? Porque não diluir estes eventos ao longo de um ano? Acho que desta forma estaria se promovendo mais a cultura e se permitindo a participação de um público maior. Maratona em 24h: é possível acompanhar? Uma das justificativas de realização da Virada Cultural é a formação de público. No meu entender, sem um trabalho de educação e sem uma programação permanentemente acessível ao público, não estamos formando público nenhum! Então um dia de “eventos” não funciona.

Política Cultural

A Virada Cultural tem um peso importante no orçamento anual da Secretaria de Cultura. Mas sendo uma ação tão pontual, e sem uma visão direcionada (uma verdadeira curadoria), não pode ser confundida com política cultural.

A intenção da iniciativa pode até ser boa. Mas a conclusão que eu tiro é de que é preciso uma virada na Virada Cultural. Para melhor, claro.

O jornal Folha de SP questiona em sua matéria publicada na sexta-feira sobre um possível cunho eleitoreiro desta proposta, especialmente devido ao crescimento do valor gasto do ano passado para este: um salto de 3 milhões de reais. É uma insinuação pertinente, apesar da Virada existir há alguns anos.

Aliás, a grande explicação da Virada está no seu histórico. Houve uma grande descontextualização e deturpação no seu caminhar até aqui. Inspirado no evento das Noites Brancas de Paris (onde os eventos tinham continuidade e onde o governo investia em novos artistas e oferecia a eles novos palcos para se apresentarem, além das noites brancas... Então não eram só 24h...) a Virada aqui é outra coisa. No Rio de Janeiro, ela tem um contorno de fazer a população superar o medo da violência e sair às ruas brindando cultura. Ainda acho que também poderia ser melhor aproveitada, mas há uma justificativa “psicológica” para uma ação tão pontual.

Enfim, o que eu desejo é que a Virada não continue sendo replicada em outros lugares desta forma tão desconectada de tudo: de propósito, de sentido, de pensamento, planejamento, conteúdo. Que em SP e em outros municípios onde já se realiza, que ela ganhe profundidade e se transforme em uma ação de democratização efetiva, além de ter uma proposta educativa e de verdadeira aproximação entre artista e público, em todos os gêneros e estilos artísticos, em todas as manifestações culturais. Aí sim poderemos aplaudir de pé e gritar “bravo!”.

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